Sem ciência, não há justiça social: no G20, Brasil dá exemplo para o mundo
*Artigo escrito para o G20 Brasil
Em março, às vésperas da reunião inaugural do Science 20 (S20), o grupo de engajamento do G20 em ciência e tecnologia, afirmei que o Brasil tinha a oportunidade de fazer a diferença ao presidir o grupo – que reúne as 19 maiores economias mundiais, somadas à União Europeia e União Africana. Cinco meses depois, essa diferença já pode ser vista na prática.
Depois de uma série de debates, cientistas das mais poderosas nações do planeta finalizaram em julho um comunicado com recomendações para enfrentar desafios que convergem a todos. Embora seja um documento assinado pela maioria dos países, há uma marca genuinamente brasileira no comunicado a partir dos temas tratados e também da forma como foi conduzido todo o processo.
Sem ciência, não há justiça social. Tomo a liberdade, aqui, de abrir um parênteses para defender a importância de que a ciência tenha seus objetivos finais voltados ao bem estar da sociedade. Uma mensagem que considero termos conseguido disseminar no S20.
Ao assumir a missão de organizar o S20, a Academia Brasileira de Ciências buscou reforçar a importância da participação da ciência no processo de planejamento e de decisão sobre questões que afetam a sociedade. Daí surgiu o tema “Ciência para a Transformação Global”, dividido em cinco forças-tarefa: inteligência artificial, bioeconomia, processo de transição energética, desafios da saúde e justiça social.
Não foram temas escolhidos ao acaso. Em comum, eles representam eixos da Agenda 2030, acordo das Nações Unidas assinado por 193 países que estabeleceu metas para erradicar a pobreza e proteger o meio ambiente – mas ainda longe de serem atingidas. Iniciamos o trabalho relembrando aos países sobre a importância de fazer valer esse acordo. Também buscamos frisar alguns desafios que têm estampado com frequência as páginas dos jornais diários, como a regulação da inteligência artificial.
O comunicado final do S20 deixa expressa a necessidade de estabelecer regulamentações de IA. E alerta sobre a importância de criar políticas flexíveis para garantir segurança no emprego e direitos dos trabalhadores, sem deixar de dar espaço para a inovação, necessária para o avanço da economia.
O texto propõe ainda criar facilities e infraestrutura compartilhadas pelos países para, juntos, desenvolvermos projetos que atendam às demandas das nações na área. Diante da força das big techs, com objetivos guiados pelo mercado, que possamos nos unir para criar mecanismos que possam tornar a IA mais acessível – e de fato útil para as demandas sociais.
Para isso, o documento recomenda a criação de centros regionais de pesquisa e compartilhamento de dados, além de estruturas intergovernamentais que possam supervisionar tecnologias capazes de operar para além do controle humano.
Na bioeconomia, há também novas contribuições. Ao sugerir um conceito único e critérios para o fornecimento de bens derivados de recursos biológicos renováveis, cientistas ajudam a resolver um impasse que vinha atravessando as discussões sobre novas políticas na área ao redor do mundo. Também implicam ao termo peso político, como ao defender a participação das comunidades indígenas e locais na tomada de decisões. Por fim, propõem construir uma cooperação internacional e multilateral em torno do tema, o que pode ser o pontapé necessário para a alavancar essa forma de economia e reconhecer seu papel como uma das estratégias diante das mudanças climáticas.
Impulso para pesquisas em transição energética é necessário e urgente
O comunicado, aliás, aborda outra das estratégias decisivas frente à crise do clima: a transição energética. O histórico dos diferentes países do G20 – que inclui nações em que o petróleo é a principal força econômica – fez do tema o mais debatido pelos cientistas do S20. Discutido palavra a palavra, ele reforça a necessidade de avançar para eliminação do carvão e frisa a importância de adotar mecanismos para minimizar emissões.
Embora necessária, é sabido que a mudança para uma economia verde, infelizmente, não ocorrerá tão rapidamente como gostaríamos, e o combustível fóssil ainda vai continuar por mais tempo. Diante disso, reforçamos no documento o incentivo para uso de novas formas de energia e alertamos sobre a necessidade de investimentos em pesquisas que possam dar impulso à transição energética. É preciso, mais do que nunca, apoio da ciência para baratear o processo de retirar o CO2 da atmosfera e dar suporte a alternativas extras.
O comunicado traz ainda recomendações frente a outros desafios que afetam o dia a dia das pessoas, como o de assegurar qualidade, equidade e acesso à saúde. Para isso, a promoção da cobertura universal de saúde, somada à prevenção e preparação para pandemias, a ações para avanço da saúde digital, a priorização da saúde mental e ao enfrentamento dos impactos gerados à rede de saúde por eventos climáticos – como ocorreu nas recentes enchentes do Sul do Brasil – são pontos fundamentais.
No S20, reforçamos ainda o compromisso dos países de buscar erradicar a pobreza e garantir a inclusão, além de agir diante de novas demandas, como a necessidade de avançar na alfabetização digital e promover campanhas contra a desinformação.
Sem ciência, não há justiça social. Tomo a liberdade, aqui, de abrir um parênteses para defender a importância de que a ciência tenha seus objetivos finais voltados ao bem estar da sociedade. Uma mensagem que considero termos conseguido disseminar no S20. Ao propormos a justiça social como uma das forças-tarefa, muitas academias, focadas nas chamadas “ciências duras”, responderam inicialmente ao Brasil que não poderiam colaborar no tema. Por fim, não só endossaram a proposta, como também enviaram novas contribuições com apoio de seus pares. É um reconhecimento de que o objetivo final da ciência é semelhante a todos.
Além do olhar para a justiça social, a edição brasileira do S20 traz outros diferenciais, como o alerta para que os países se antecipem às mudanças demográficas – fator que impacta na saúde, educação e previdência, além da economia.
Tal alerta indica a preocupação brasileira de não só olhar para as demandas do todo, mas também para as partes. O G20 é um grupo de países diverso em demografia, renda per capita, número de habitantes e investimento em ciência e tecnologia. Ao discutir as recomendações na reunião de Cúpula, fizemos da busca por objetivos em comum o nosso ideal.
O Brasil entrega um documento marcado tanto pela preocupação com o rigor científico quanto pela busca por consensos, base para a boa diplomacia – o que faz com que o comunicado final tenha mais chance de ser aplicado.
Cabe ressaltar também que, desde o início dos debates, o governo brasileiro mostrou-se interessado em acolher as sugestões do S20, sem interferir em nenhum momento nas nossas decisões. Um exemplo de como fazer valer a participação da sociedade nos debates.
O processo agora entra em nova fase. Com o comunicado do S20 e de outros grupos de engajamento já entregues, cabe ao Brasil incorporar em suas recomendações finais aos chefes de Estado e de governo os alertas e propostas da ciência e de outros eixos sociais.
A ciência não tem todas as respostas para os problemas do mundo. Mas sem ciência, não há inovação, nem tampouco desenvolvimento. E sem ciência, não há justiça social, frase que tanto frisei no S20, e continuarei a repetir enquanto for necessário.
O Brasil tem ciência e faz boa ciência – e a faz para a sociedade.